“O inferno dos vivos não é algo que será; se
existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que
formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é
fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até
o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e
aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno,
não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.” Ítalo Calvino
Nesta breve reflexão, a
retomada da fala de Marcovaldo em Cidades Invisíveis me vem como potente
imagem, pertinente para registrar algumas escolhas possíveis nessa Matrix, ou
sociedade do espetáculo na qual estamos imersos. A vida é arte, beleza e no que
diz respeito às manifestações artísticas variadas por meio das quais venho me
deparando em minhas andanças e imersões habituais, algo me vem atravessando e
ligando um sinal de alerta sempre necessário, sobretudo, quando se trata de
abordar um tema tão delicado quanto literatura, música, arte... e estado de
exceção.
Como ao desejar fazer
uma denúncia ou crítica social, o artista não pode acabar por provocar no
telespectador justamente o efeito contrário daquilo que se deseja romper? A
resposta, a meu ver, é simples – não banalizar o mal. Em outras palavras: é “arriscada
e exige atenção e aprendizagem contínuas”, como diria a personagem de Calvino. Vamos
abrir espaço, não vamos naturalizar o que vem sendo naturalizado, porque corre
o risco de se acostumar tanto a ficar enlamaçado, a fazer parte do inferno a
ponto de nem percebê-lo mais.
Vi um artista
talentoso, com uma voz aveludada, cantando letras de uma potencialidade crítica
imensa, tendo que lutar, mesmo sem saber, para sua voz não ser abafada pelos
músicos que o “acompanhavam”, ou antes deveriam estar ali como mero pano de
fundo para mensagem que desejava passar; vi a falta de sensibilidade de uma
produção que em teatro fechado, num período de inverno onde todas as “ites” estão
à deriva, colocar gelo seco com cheiro, dificultando em sua ânsia de exagero a
plateia de respirar, a assistir ao show.
Vi uma grande atriz ter
sua força enfraquecida, quando no lugar de reflexões importantes e denúncia em
que pretendia fazer contra as injustiças, sofrimentos, exclusão sofridas pelo
público LGBTQUIA+, em especial no contexto dos 80, quando surgiu a AIDS, acabando
por fazer uma descrição exacerbada do mal (o tal toque jornalístico, para
garantir a veracidade) transformar um tema tão importante em despejo de ódio,
de lixo no público que estava ali para prestigiar, porque justamente não
exclui.
Vi um músico tocando
MPB para um público que comia e bebia colocando-o como pano de fundo, até que duas
figuras femininas chegam ao salão e o olham e cantam e o veem (“Nós o enxergamos,
sua música é maravilhosa”). Nesse mesmo momento, a música atravessada por um
movimento de outros corpos femininos feridos, que se sentiram ofendidas talvez,
levantarem-se para marcar território, porque foram ensinadas a competir, porque
querem caçar. Não entenderam nada.
Bora abrir espaço? Fica a dica: honrar
quem veio antes, olhar para um Saramago, um Gabriel Garcia Marques, um Borges,
um Cortázar, uma Clarice Lispector, uma Cecília Meirelles, entre outro(a)s
grandes, que souberam muito bem evitar esses deslizes, essa banalização, pois, sim, é necessário um tom certo para falar de coisas tão difíceis, a
alegoria, a metáfora. Mas, estão todos tão acostumados com o Inferno, com a
Matrix que já nem mais percebem. Não é verdade?