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24 junho 2021

A construção dos modos de ser e estar na sociedade capitalista

Há autores que impactam o nosso modo de compreender a realidade de tal forma que acabam por tornar-se uma sorte de companhia necessária, se não durante algumas fases de nossa vida, desde sempre. Como aqueles amigos verdadeiros que mesmo no afastamento necessário provocado pelo destino, quando retomado o contato, é como se o tempo não tivesse passado, tivesse apenas estado em suspenso, e sua presença é ainda mais marcante bem como as afinidades.

O mesmo se dá com a leitura de clássicos, cada vez que retomo a leitura de um é como se uma nova camada da realidade submersa no texto e imperceptível até então se vislumbrasse para a versão de mim mesma no presente, que carrega consigo quem fui no passado, mas não só, já não é a mesma graças às experiências acumuladas, o conhecimento de mundo adquirido. Este semestre tem me movido nessa série de (re)encontros, oportunizados pela (re)leitura de Walter Benjamin e de Adorno, teóricos da Escola de Frankfurt, extremamente importantes para minha formação no passado e, com certeza, no presente não tem sido diferente. Difícil não nos deixar afetar. O que reforça a atualidade da teoria crítica de ambos e a potência dessa narrativa devido ao deslocamento provocado por essa leitura.

Iria mais adiante um pouco, a garantia do acesso à leitura é imprescindível numa sociedade dita democrática, ainda mais quando esse acesso se dá via diferentes representatividades, capazes de potencializar a transmissão de determinado patrimônio cultural para grupos, cuja voz ao longo da história veio sendo "apagada".
  
A natural intertextualidade, interdiscursividade e dialogicidade permitem caminhar entre as fissuras, ensinando a sociedade o acolhimento de suas memórias. Temos então as seguintes cenas: de um lado, em primeiro plano duas personagens jogando monopólio, presente típico de uma data festiva como o Natal, principalmente, dos jovens na década de 80 e 90, por exemplo; ao fundo delas, o cenário composto por  uma árvore de Natal (um cacto), enfeitada com bolas e carinhas; à medida que jogam, o diálogo de ambas faz referência a um determinado contexto sócio-político brasileiro e a figuras políticas conhecidas.

De outro lado, em primeiro plano, um jovem negro, de aproximadamente 21 anos, tatuado, vestido de funkeiro, situado e envolto num espaço organizado com muuitos livros, com imagens representativas das ciências sociais; atrás dele, a direita do telespectador, a placa da rua Marielle Franco e, abaixo dela, uma pequena estátua do Cristo Redentor. 

Se fosse criar uma questão aglutinadora, capaz de provocar o que os vídeos vêm problematizar, seria: Como determinadas brincadeiras e determinados filmes contemporâneos podem impactar na construção dos nossos modos de estar no mundo e de encarar a vida?

A visualização e a resposta a essa questão, a qual não pretendo formular aqui, aparece de forma performática, clara, didática, criativa, reflexiva nos vídeos Rita von Hunt - Adorno e a indústria da cultura - e Chavoso da USP: a indústria cultural e o mito de que o passado era melhor. 

No primeiro, Guilherme Pereira, “o professor, ator, youtuber, comediante e drag queen brasileiro", além de clarificar o quanto vivemos numa cultura doente e o quanto Adorno é fundamental para percebermos “a manufatura dos nossos desejos”; inspira e instiga o público a buscar a leitura de clássicos, como: A indústria cultural e A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, textos mencionados durante a performance, e constrói outra representatividade para as drags, através da performance realizada por Rita von Hunt, caminhando na contramão de estigmatizações costumeiras a essa comunidade.

No segundo, Thiago Torres, jovem, youtuber, nascido e criado em Brasilândia, no extremo norte da capital paulista, estudante da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) desde 2018, promove o trânsito entre dois mundos/espaços: o do “privilégio, conhecimento, cheio de pessoas ditas importantes, de famílias importantes” e o da “quebrada onde as pessoas são trabalhadores”, que mantém a cidade de pé, sendo “ignorados” constantemente; também rompe estigmas com o seu Chavoso da USP, não só por levar o conhecimento e inspirar jovens da periferia a lerem clássicos, assistirem outros youtubers com representatividade das minorias, mas também por representá-los sob outra perspectiva, dentro da universidade.

Ambos os vídeos não só apresentam como através das brincadeiras e dos filmes/séries modos de ser e estar no mundo vão sendo naturalizados no inconsciente coletivo, como também esclarecem o que é a indústria cultural. No que diz respeito às brincadeiras, Rita von Hunt aborda como jogos (Banco Imobiliário, Wars, Comandos em ação, Forte Apache, Soldadinhos de chumbo...) naturalizados nas brincadeiras do dia a dia servem para forjar, treinar as crianças e os jovens para o mundo “violento, capitalista, de espólio, de expropriação e de fazer dinheiro sem nenhum tipo de escrúpulo”. E no que tange a determinados filmes/séries, como moldam nossas subjetividades de maneira intencional, produzindo visões distorcidas da realidade, com o intuito de fortalecer perspectivas  que deseja que sejam adotadas pelo público. Aqui, nesse caso, vale frisar a importância em compreender a diferença entre história e memória, categorias esclarecidas por Chavoso da USP, tão confundidas e deturpadas na memória brasileira. 

Vale a pena assisti-los! Deixo abaixo os links dos vídeos e a referência dos clássicos que os inspiraram.

Referências Bibliográficas:

BENJAMIN, W. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e histórica da cultura. 7ª ed. Obras escolhidas, volume 1. São Paulo: Brasiliense, 1994. (

Chavoso da USP: a indústria cultural e o mito de que o passado era melhor. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XIZXJ-KyaL0 (tempo 29:39). Acesso em: mar./2021

HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. A indústria cultural. In.: Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

Rita von Hunt - Adorno e a indústria da cultura. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F98LqQt0Rd8&list=RDCMUCZdJE8KpuFm6NRafHTEIC-g&index=7 (tempo 12:58) Acesso em: mar./2021