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30 agosto 2025

O Inferno dos vivos ou a alienação dos vivos - mortos?

 

“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.Ítalo Calvino

 

Nesta breve reflexão, a retomada da fala de Marcovaldo em Cidades Invisíveis me vem como potente imagem, pertinente para registrar algumas escolhas possíveis nessa Matrix, ou sociedade do espetáculo na qual estamos imersos. A vida é arte, beleza e no que diz respeito às manifestações artísticas variadas por meio das quais venho me deparando em minhas andanças e imersões habituais, algo me vem atravessando e ligando um sinal de alerta sempre necessário, sobretudo, quando se trata de abordar um tema tão delicado quanto literatura, música, arte... e estado de exceção.

Como ao desejar fazer uma denúncia ou crítica social, o artista não pode acabar por provocar no telespectador justamente o efeito contrário daquilo que se deseja romper? A resposta, a meu ver, é simples – não banalizar o mal. Em outras palavras: é “arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas”, como diria a personagem de Calvino. Vamos abrir espaço, não vamos naturalizar o que vem sendo naturalizado, porque corre o risco de se acostumar tanto a ficar enlamaçado, a fazer parte do inferno a ponto de nem percebê-lo mais.

Vi um artista talentoso, com uma voz aveludada, cantando letras de uma potencialidade crítica imensa, tendo que lutar, mesmo sem saber, para sua voz não ser abafada pelos músicos que o “acompanhavam”, ou antes deveriam estar ali como mero pano de fundo para mensagem que desejava passar; vi a falta de sensibilidade de uma produção que em teatro fechado, num período de inverno onde todas as “ites” estão à deriva, colocar gelo seco com cheiro, dificultando em sua ânsia de exagero a plateia de respirar, a assistir ao show.

Vi uma grande atriz ter sua força enfraquecida, quando no lugar de reflexões importantes e denúncia em que pretendia fazer contra as injustiças, sofrimentos, exclusão sofridas pelo público LGBTQUIA+, em especial no contexto dos 80, quando surgiu a AIDS, acabando por fazer uma descrição exacerbada do mal (o tal toque jornalístico, para garantir a veracidade) transformar um tema tão importante em despejo de ódio, de lixo no público que estava ali para prestigiar, porque justamente não exclui.

Vi um músico tocando MPB para um público que comia e bebia colocando-o como pano de fundo, até que duas figuras femininas chegam ao salão e o olham e cantam e o veem (“Nós o enxergamos, sua música é maravilhosa”). Nesse mesmo momento, a música atravessada por um movimento de outros corpos femininos feridos, que se sentiram ofendidas talvez, levantarem-se para marcar território, porque foram ensinadas a competir, porque querem caçar. Não entenderam nada.  

Bora abrir espaço? Fica a dica: honrar quem veio antes, olhar para um Saramago, um Gabriel Garcia Marques, um Borges, um Cortázar, uma Clarice Lispector, uma Cecília Meirelles, entre outro(a)s grandes, que souberam muito bem evitar esses deslizes, essa banalização, pois, sim, é necessário um tom certo para falar de coisas tão difíceis, a alegoria, a metáfora. Mas, estão todos tão acostumados com o Inferno, com a Matrix que já nem mais percebem. Não é verdade?