Há autores que impactam o nosso modo de compreender a realidade de tal forma que acabam por tornar-se uma sorte de companhia necessária, se não durante algumas fases de nossa vida, desde sempre. Como aqueles amigos verdadeiros que mesmo no afastamento necessário provocado pelo destino, quando retomado o contato, é como se o tempo não tivesse passado, tivesse apenas estado em suspenso, e sua presença é ainda mais marcante bem como as afinidades.
O mesmo se dá com a leitura de clássicos, cada vez que retomo a leitura de um é como se uma nova camada da realidade submersa no texto e imperceptível até então se vislumbrasse para a versão de mim mesma no presente, que carrega consigo quem fui no passado, mas não só, já não é a mesma graças às experiências acumuladas, o conhecimento de mundo adquirido. Este semestre tem me movido nessa série de (re)encontros, oportunizados pela (re)leitura de Walter Benjamin e de Adorno, teóricos da Escola de Frankfurt, extremamente importantes para minha formação no passado e, com certeza, no presente não tem sido diferente. Difícil não nos deixar afetar. O que reforça a atualidade da teoria crítica de ambos e a potência dessa narrativa devido ao deslocamento provocado por essa leitura.
Iria mais adiante um pouco, a garantia do acesso à leitura é imprescindível numa sociedade dita democrática, ainda mais quando esse acesso se dá via diferentes representatividades, capazes de potencializar a transmissão de determinado patrimônio cultural para grupos, cuja voz ao longo da história veio sendo "apagada".
A natural intertextualidade, interdiscursividade e dialogicidade permitem caminhar entre as fissuras, ensinando a sociedade o acolhimento de suas memórias. Temos então as seguintes cenas: de um lado, em primeiro plano duas personagens jogando monopólio, presente típico de uma data festiva como o Natal, principalmente, dos jovens na década de 80 e 90, por exemplo; ao fundo delas, o cenário composto por uma árvore de Natal (um cacto), enfeitada com bolas e carinhas; à medida que jogam, o diálogo de ambas faz referência a um determinado contexto sócio-político brasileiro e a figuras políticas conhecidas.
De outro lado, em primeiro plano, um jovem negro, de aproximadamente 21 anos, tatuado, vestido de funkeiro, situado e envolto num espaço organizado com muuitos livros, com imagens
representativas das ciências sociais; atrás dele, a direita do telespectador, a
placa da rua Marielle Franco e, abaixo dela, uma pequena estátua do Cristo Redentor.
Se fosse criar uma questão aglutinadora, capaz de provocar o que os vídeos vêm problematizar, seria: Como determinadas brincadeiras e determinados filmes contemporâneos podem impactar na
construção dos nossos modos de estar no mundo e de encarar a vida?
A visualização e a resposta a essa questão, a qual não pretendo formular aqui, aparece de forma performática, clara, didática, criativa, reflexiva nos vídeos Rita von Hunt - Adorno e a indústria da cultura - e Chavoso da USP: a indústria cultural e o mito de que o passado era
melhor.
No primeiro, Guilherme Pereira, “o
professor, ator, youtuber, comediante
e drag queen brasileiro", além de clarificar o quanto vivemos numa cultura
doente e o quanto Adorno é fundamental para percebermos “a manufatura dos
nossos desejos”; inspira e instiga o público a buscar a leitura de clássicos,
como: A indústria cultural e A obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica, textos mencionados durante a performance, e constrói outra
representatividade para as drags, através da performance realizada por Rita von Hunt, caminhando na contramão de estigmatizações costumeiras a essa comunidade.
No segundo, Thiago
Torres, jovem, youtuber, nascido e
criado em Brasilândia, no extremo norte da capital paulista, estudante da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) desde 2018, promove o trânsito entre dois
mundos/espaços: o do “privilégio, conhecimento, cheio de pessoas ditas
importantes, de famílias importantes” e o da “quebrada onde as pessoas
são trabalhadores”, que mantém a cidade de pé, sendo “ignorados” constantemente; também rompe
estigmas com o seu Chavoso da USP, não só por levar o conhecimento e inspirar
jovens da periferia a lerem clássicos, assistirem outros youtubers com
representatividade das minorias, mas também por representá-los sob outra
perspectiva, dentro da universidade.
Ambos os vídeos não só apresentam como através das brincadeiras e dos filmes/séries modos de ser e estar no mundo vão sendo naturalizados no inconsciente coletivo, como também esclarecem o que é a indústria cultural. No que diz respeito às brincadeiras, Rita von Hunt aborda como jogos (Banco Imobiliário, Wars, Comandos em ação, Forte Apache, Soldadinhos de chumbo...) naturalizados
nas brincadeiras do dia a dia servem para forjar, treinar as crianças e os
jovens para o mundo “violento, capitalista, de espólio, de expropriação e de
fazer dinheiro sem nenhum tipo de escrúpulo”. E no que tange a determinados filmes/séries, como moldam nossas subjetividades de maneira intencional, produzindo visões distorcidas da realidade, com o intuito de fortalecer perspectivas que deseja que sejam adotadas pelo público. Aqui, nesse caso, vale frisar a importância em compreender a diferença entre história e memória, categorias esclarecidas por Chavoso da USP, tão confundidas e deturpadas na memória brasileira.
Vale a pena assisti-los! Deixo abaixo os links dos vídeos e a referência dos clássicos que os inspiraram.
Referências Bibliográficas:
BENJAMIN, W. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e histórica da cultura. 7ª ed. Obras escolhidas, volume 1.
São Paulo: Brasiliense, 1994. (
Chavoso da USP: a indústria cultural e o mito de que o passado era melhor. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XIZXJ-KyaL0 (tempo 29:39). Acesso em: mar./2021
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. A indústria cultural. In.: Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Rita von Hunt - Adorno e a indústria da cultura. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F98LqQt0Rd8&list=RDCMUCZdJE8KpuFm6NRafHTEIC-g&index=7 (tempo 12:58) Acesso em: mar./2021